A forma humana na obra de Justina D'Agostino

por Paulo Gallina

Ao longo da década de 1990, a artista plástica Justina D’Agostino explorou, em pintura, o gênero de imagens da natureza morta. Já nessa época, ela explorava interesses que, mais tarde, ganhariam destaque em sua pintura, mas estou me adiantando. Nessas pinturas anteriores (i. e. do inicio dos anos 1990), as figuras [garrafas, esferas, frutas (maçãs, laranjas etc.), louças, eventuais objetos, crânios, flores etc.] são realizações formais respondendo à tensionamentos advindos da história da arte: em outras palavras, tentando aprender com os mestres da pintura do século XX, Justina D’Agostino experimentava com as estilizações formais das vanguardas artísticas do inicio do século passado e, assim, buscava dominar a técnica da pintura e construir sua poética visual.
São os cenários [aquilo que está posto atrás das figuras] destas pinturas dos selvagens anos 1990, entretanto, que apontam os caminhos que a pintora trilhará no século XXI. Se as figuras são estilizadas ao ponto de ganharem volume e tridimensionalidade conquanto fundem-se umas às outras, nos planos mais distantes, que não são o tema ou foco da imagem, a artista permite-se explorar a cor em interação livre. Sem o intento de apresentar as paredes de uma casa ou bucólicos cenários campestres, a pintora explora com a cor o espaço interno em sua obra: desmontando a profundidade da perspectiva com pinceladas capazes de fundir cores dentro de uma paleta.
Justina D’Agostino, assim, cria planos sobrepostos e interligados que negam a existência de um espaço cênico [onde a ação se dá] e, na planaridade criada nesse espaço que só pode existir [virtualmente e enquanto imagem], a artista mostra-nos um mundo que é um mosaico. Um mundo que foi primeiro fragmentado e depois reunificado. Entre a fragmentação e a unidade refeita ao fundo de suas naturezas mortas, a pintora parece reencontrar-se com uma unidade que perdeu-se no tempo, mas que não foi esquecida. Uma espécie de apaziguamento em relação a seus interesses enquanto artista e o conhecimento sobre o fazer do pintor herdado de seu pai, Victorio D’Agostino.
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Há uma presença biográfica nas pinturas de Justina. Não me entenda mal, esta pesquisa visual não é uma representação [ou tradução] da biografia da autora para a linguagem visual. O que é possível de se notar nessas pinturas é: conquanto o mundo avançava tecnologicamente a longos e largos passos, a fome, a doença e a exploração humana também ganhavam força. Esse dissenso programado e contraditório que atravessa o século XX também pode ser visto nas pinturas da senhora D’Agostino.
Conforme os eventos incidiam sobre a família, a nação e o mundo, nessa jornada que hoje aproxima-se de cinquenta anos de produção; a visualidade pintada produzia uma espécie de síntese, que não se esquiva de apontar as muitas contradições, concessões, paradoxos e apaziguamentos também trazidos pela maré do tempo presente. Esses movimentos que estou comentando aqui reforçam a dimensão de uma imagem construída por fragmentos de uma memória que se refaz porque o próprio sujeito no mundo precisa se refazer constantemente.
É como se, alegoricamente, o sujeito se refaz em seus afetos, guardados pela memória, para sobreviver em um mundo que é demasiado grande para ser percebido de uma vez e que, simultânea e contraditoriamente, não se pode negar ser inteiriço e integral. Já no inicio dos anos 2000, a pintora deixa de tratar das vanitas [naturezas mortas] e insere a figura humana nas imagens que produz. Não por acaso, também nessa época, sua pesquisa visual expande-se e, junto de seu fazer como pintora, Justina D’Agostino, começa a produzir colagens.

Série Identidades/2023

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Com tinta e pincel, a artista reduz a forma humana a silhuetas, contornos e índices. Com carinho, a pintora parece constatar que as formas em pintura são a forma humana. E portanto ela, enquanto autora, não precisa debruçar-se amiúde nos detalhes da figura para apresentá-la enquanto sujeito. O que leva este crítico a repensar aquelas naturezas mortas do inicio do texto como uma especulação sobre a subjetividade da pintora que buscava nos objetos um reflexo de si ou do observador de sua produção.
Com tinta, cola, pincel e imagens fotográficas - em sua maioria imagens tiradas pela própria artista -, o que se vê é o jogo da versatilidade técnica em função de uma poética que busca reunir, integrar, as diversas facetas do mundo. Talvez por isso, uma das primeiras coisas que a artista comenta sobre sua produção ao apresentá-la para alguém [e Justina é uma pessoa muito aberta e interessada na troca sobre e a partir de seu trabalho] seja: “Eu pinto como eu escrevo”. E, parece-me que, a artista quer dizer com isso que sua pintura, assim como sua escrita, é uma exploração do mundo pela inescapável subjetividade que cada um carrega consigo.
Como se certa ideia objetiva de que o mundo é o que o mundo é estivesse sendo posta em cheque porque, afinal, o mundo é também como ele é percebido para além da superfície mais visível das coisas. Como se Justina D’Agostino estivesse duvidando que a pele das coisas fosse a camada mais clara que alguém pode perceber num mundo tão vasto e povoado como o mundo contemporâneo.

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Fotografia: Thales Trigo

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