O Corpo da Memória de

Justina D'Agostino

por Paulo Gallina
A série de pinturas Somos todos Memória, 2025, de Justina D'Agostino opera em pintura vultos e corpos como criaturas desconjuradas no tempo. São figuras humanas que não se fixam neste ou naquele momento, buscando fixar-se no interior de quem as vê. É com esse espírito que essas imagens questionam a natureza da memória. O próprio título da série dá indício dessa especulação: afinal memórias pertencem a alguém, elas estão contidas em um(a) sujeito. A artista porém trabalha a ambiguidade de seu objeto de estudo (i. e. a memória, sua construção e seus desdobramentos) por não postular o sujeito da frase.
Se por um lado as imagens e o título da série parecem afirmar que uma subjetividade se constrói a partir das memórias - filhas da experiência e da fantasia do viver -, uma leitura mais distante, e particularmente dirigida, pode revelar que neste título também cabe a ideia de que esta mesma subjetividade é captada e guardada pela memória de outrem. É quase como se a artista, em seus retratos tentasse buscar um sujeito que é a somatória de todos os momentos capazes de criar e tocas o presente. Revelar que o tempo é uma construção a partir da memória e não anterior a ela.
As pinturas de Justina D’Agostino fazem-se presentes no mundo sobrepondo campos de cor e linhas sobre suportes variados: porque assim como a memória a pintura pode se projetar sobre mais de uma matéria. Em um primeiro momento, vemos uma especulação sobre papéis e ela (a especulação) cresce - literalmente as dimensões aumentam - para construções sobre mdf e tela . (1)
As composições assim paulatinamente exploram o campo de cor e o campo do que fica na memória. Sobrepondo cores, a artista esconde camadas anteriores,(2) as quais por sua vez tendem a tingir as camadas mais visíveis e superficiais. Afinal, apesar de pensarmos a memória como lembrança, ela também diz respeito ao esquecimento [deliberado ou incidental].
Esse gesto continuado - que sobrepõe e mescla camadas anteriores e posteriores; [esse gesto] que dá contorno e preenchimento, construindo desta forma um retrato por vultos aglomerados como que refletindo a capacidade da memória de convocar fantasmas - é o que dá a imagem a pintura e, como alegoria, é o que dá sentido a vida.
1. Rua Prudente de Moraes 665 - uma memória afetiva, 2025, da série Somos todos memória. Técnica mista sobre tela 80 x 100 cm.
2. Uma analogia para o esquecimento?

Justina D'Agostino

Graduada em arquitetura pela FAAUSP em 1977, Justina iniciou sua incursão no mundo da arte em 1983, onde desde então vem construindo uma trajetória repleta de realizações e reconhecimento.
Seu interesse pelas artes plásticas transcende o mero domínio técnico, impulsionado por uma profunda convicção na capacidade da arte de conectar pessoas através de seus desenhos. Para Justina, suas obras são convites para explorar um mundo de narrativas e conexões, onde as linhas traçadas se convertem em pontes entre diferentes perspectivas e experiências.
O estilo artístico de Justina é intrinsecamente ligado à sua visão de mundo, refletindo uma fusão de observação meticulosa e interpretação criativa. Seu processo de pintura é uma espécie de diálogo constante com o entorno, onde pinceladas são reflexões de sua percepção sensível dos elementos que a cercam. Como uma escritora de histórias visuais, ela transforma suas experiências cotidianas em composições vívidas, destacando nuances e detalhes que capturam a essência do momento.
Suas obras, marcadas pela beleza e pela profundidade emocional, são testemunhos da sua busca incessante pela expressão autêntica e pela conexão humana.
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Somos Todos Memória - 2025

por Justina D'Agostino

A procura por representações e alusões à memória sempre me levou a um mergulho na complexidade das camadas que nos atravessam. Surgem comoregistros dispersos, espaços-temporais aleatórios que, vez ou outra, nos pontuam. Dentro deste universo, afirmo: Somos todos memória. A série que apresento é um recorte desse conceito, estruturado em três etapas.
A primeira surgiu de uma referência impactante: a visita ao Parque de la Memoria - Monumento a las Víctimas del Terrorismo de Estado, no dia 14 de janeiro de 2025, em Buenos Aires. O impacto dessa experiência se somou à repercussão do filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, que reverberava naquele momento.
A partir dos registros que fiz no parque, desenvolvi nove estudos, explorando diferentes formas de representação da memória. O acúmulo de fragmentações se revelou simbolicamente nos retângulos de cimento nas muralhas do parque, coexistindo entre água, terra e céu. Ali estavam apenas nomes - representações de vidas interrompidas, que se somam aos vazios e cheios da memória que estamos constantemente redescobrindo.
O fazer-se memória estava ali, com a arte como um tributo à vida que vence a morte. Para refletir sobre isso, recorro às palavras de Susan Sontag, registradas por Jonathan Cott em Susan Sontag: a entrevista completa para a revista Rolling Stone (Bazar do Tempo, 2024):“A arte é a condição mais geral do passado no presente. Tornar-se passado em uma versão é tornar-se arte.”
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Dessa primeira etapa resultaram nove estudos sobre papel Hahnemühle Carnwall 430 g/m², 30 x 40 cm, acid free. A gramatura e a composição do papel não são meras escolhas técnicas: são escolhas que dialogam com a permanência, com a resistência ao tempo. Cada um trouxe um novo desafio entre texturas e cores, percorrendo linhas que nunca se definem em um contorno fixo. Nessa ambiguidade da forma, encontrei a possibilidade de um diálogo que rompe com as fragilidades do fragmento, dando-lhe força em contextos alternados, para que se imponha como uma identidade única.
Numa segunda etapa, avancei para um novo momento: deixei os estudos e passei para uma experiência direta na pintura, agora sobre placas de MDF 40 x 70 x 0,5 cm. Esse suporte não é apenas um aparato técnico, é uma nova camada da memória. Nas relações entre objeto e matéria, entre as expectativas de transcendência e as oscilações do percurso espaço-temporal de criação, a memória se revela em sua potência máxima, expressa justamente naquilo que perdemos e ganhamos durante o processo.
Dessa etapa resultaram quatro trabalhos, nos quais os percursos entre camadas, vazios e cheios, ruídos e silêncios chegam ao limite do suporte, explorando ao máximo a matéria até sua exaustão.
Na terceira e última etapa, encerro a série Somos todos memória em uma tela de 80 x 100 cm: Rua Prudente de Moraes 665 - Uma memória afetiva. É a única obra da série que recebe um nome próprio, um título que a distingue. A memória se inscreve nos espaços que habitamos, nos vestígios que deixamos e nos traços que escolhemos preservar. O percurso dessa série começou diante das placas de concreto do Parque de la Memoria, onde nomes cravados evocam vidas interrompidas. E terminou em outra placa, a da Rua Prudente de Moraes 665, mais do que um endereço, um registro. Entre o verde do quintal e o azul do céu, a memória persiste, atravessa o tempo, se refaz. Porque, afinal, somos todos memória.
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