A Floresta como Relíquia Viva

Charles Barreto

O olhar de Charles Barreto foi afiado na fricção entre mundos. Nascido em Aracaju, foi na efervescência das feiras de antiguidades do Rio de Janeiro que ele aprendeu a enxergar a alma dos objetos. Após uma vida dedicada à tecnologia, ele mergulhou de vez em sua paixão, trocando a lógica dos sistemas pela linguagem da arte. Hoje, este colecionador e "garimpeiro de mundos" cria em seu ateliê na serra fluminense, um refúgio imerso na Mata Atlântica onde o som de um rio lhe serve de trilha sonora. É dessa conexão visceral com a sua floresta particular que emerge a força para dialogar com a outra, a imensa e complexa Amazônia.
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Na contramão do ruído do mundo, Charles Barreto escuta o que poucos ouvem: o sussurro das coisas esquecidas, o eco dos objetos abandonados, o sopro da mata que ainda resiste. Sua arte não nasce da pressa, mas da observação demorada, do tempo que se deposita nas superfícies — madeira, ferro, folhas e memórias. A cada obra, ele nos convida a reencontrar o que deixamos para trás.
Seu processo criativo é visceral, quase xamânico: vasculha o mundo com olhos de garimpeiro e coração de poeta. Suas mãos recolhem cacos, restos e resíduos, mas não há nada de aleatório em seu gesto. Ele reconhece em cada fragmento esquecido uma história pronta para ser revelada. E então transforma o que era detrito em relíquia visual.
Sua técnica é a assemblage — mas esta é uma definição que limita, em vez de explicar. Charles costura tempos. Em suas obras, passado e presente colidem com beleza e inquietação. Ele não emoldura paisagens; ele reconstrói camadas da existência, como quem traduz em arte aquilo que o solo, o rio e o ar sussurram em segredo. A Amazônia, para ele, não é um tema distante; é um organismo, um corpo em constante diálogo com sua arte. Sua obra é um alerta silencioso: o que descartamos, o que exploramos, o que fingimos não ver, tudo retorna — em forma de arte, denúncia e beleza.
Mas sua arqueologia não se detém na dor; ela busca a sabedoria da resiliência, o que nos leva à sua confissão sobre a tríade sagrada de ingredientes amazônicos. A raiz, que lhe ensina sobre a beleza da luta para vencer a resistência do solo. O pigmento, cuja extração laboriosa lhe revela "o quão somos pequenos" diante da natureza. E, crucialmente, o som da água, que o acalma e lhe traz "imagens difusas ou inéditas que conduzem à ideia de um novo trabalho". Raiz, pigmento e som: a estrutura, a essência e o fluxo. A própria gramática da vida.
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Ao falar de sua própria trajetória, Charles não se vangloria, mas revela seu credo: o compromisso com a memória, com a escuta, com o resgate. Há algo de místico em seu olhar que vê sentido onde outros veem sobra, que encontra poesia no abandono. Para ele, criar é um ato de reconexão com a essência das coisas — com o que a floresta ainda pode nos ensinar.
E talvez aí resida a sua força definitiva: Charles Barreto não pinta a floresta, ele a incorpora. Suas obras não são ilustrações da Amazônia — são a própria floresta transmutada: em sua resistência, em sua cicatriz, em sua força. Seus quadros são altares de uma espiritualidade sutil e urgente, construídos com os escombros do que fomos e com os vestígios do que ainda podemos ser. Em um tempo de pressa e excesso, sua arte é o antídoto: contemplação, escuta e matéria que pulsa. É terra, é tempo, é testemunho. É a voz de tudo aquilo que insiste em viver, mesmo depois de esquecido.
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